O Mandarim
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Narrado por:
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Sónia Seabra
Sobre este áudio
u chamo-me Theodoro — e fui amanuense do Ministerio do Reino.
N’esse tempo vivia eu á travessa da Conceição n.º 106, na casa d’hospedes da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do bairro central, esguio e amarello como uma tocha d’enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola franceza.
A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina á carteira da minha repartição, ia lançando, n’uma formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis: «Ill.mo e Exc.mo Snr. — Tenho a honra de communicar a V. Exc.a... Tenho a honra de passar ás mãos de V. Exc.a, Ill.mo e Exc.mo Snr...»
Aos domingos repousava: installava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara d’ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no verão, era deliciosa: pelas janellas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monotona susurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n’um lençol como um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção molle das carinhosas mãos da D. Augusta; e ella, arrebitando o dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas lustrosas com o pentesinho dos bichos...
©1900 José Maria Eça de Queiroz (P)2024 Classici Stranieri