• 57. Reflexões sobfe o Determinismo
    Sep 26 2025

    O que uma reflexão sobre o determinismo fala sobre nós, seres humanos? Como ela pode nos ajudar a pensar o mundo da Inteligência Artificial? O que ela pode falar sobre a realidade? Até que ponto somos capazes de criar, imaginar e reinventar quem somos?


    O determinismo, doutrina que dialoga diretamente com o fatalismo e a pré-destinação, marcou profundamente a ciência moderna. Ela parte da ideia de que tudo no universo segue uma cadeia inevitável de causas e efeitos. Em Bacon, Descartes e Newton, o mundo se tornou uma máquina previsível. Na formação do pensamento ocidental, essa visão extrapolou a física e invadiu as ciências humanas: por um momento, o ser humano passou a ser explicado por fatores biológicos, raciais e geográficos, como se cultura, comportamento e inteligência fossem produtos automáticos da natureza.


    Mas o século XX abalou esse edifício. O mesmo campo da física, com a Teoria do Caos e a Mecânica Quântica, mostrou que sistemas deterministas, mesmo regido por leis naturais e universais, podem ser imprevisíveis.


    E é nesse contexto que emergem Boas, na antropologia, e Freud, na psicanálise, cada um reagindo ao determinismo em seu território. Boas rompeu com a ideia de que a cultura é produzida pela biologia ou pelo meio ambiente; mostrou que cada sociedade inventa suas próprias formas de viver e significar o mundo. Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, recusou a ideia de que a psique humana é apenas um reflexo de impulsos neurofisiológicos: somos atravessados por linguagem, desejo, memória.


    Ambos devolveram ao humano aquilo que o determinismo queria retirar: complexidade, simbolização, criatividade. Em resumo: sua própria humanidade.


    Mas há uma outra provocação que hoje se impõe com força: o quanto o determlinismo nos ajuda a pensar a relação do ser humano com o mundo de IA e robótica? Se acreditarmos que o ser humano é apenas um conjunto de reações neurológicas e comportamentos previsíveis, então máquinas suficientemente sofisticadas podem não só imitar, mas substituir aspectos centrais da experiência humana. Por outro lado, se reconhecemos que há no humano algo que escapa — capacidade simbólica, criação de sentido, liberdade interpretativa, afetos e emoções — então compreender os limites do determinismo é essencial para diferenciar o que pode ser automatizado daquilo que constitui a nossa singularidade mais profunda.


    No fim das contas, pensar determinismo é pensar aquilo que nos faz humanos. Entre as forças que nos moldam e as possibilidades que criamos, existe um espaço de liberdade e imaginação. E é justamente esse espaço que precisamos proteger enquanto o futuro da IA avança — porque é nele que mora tudo aquilo que nenhuma máquina, por mais sofisticada, será capaz de substituir.

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  • 56. Culturalismo: Franz Boas
    Sep 7 2025

    Franz Boas não começou como antropólogo. Formado em física com foco em geografia, lançou-se em 1883 à Ilha de Baffin, no Canadá, para estudar a relação entre meio ambiente e vida humana. Queria medir gelo, registrar marés e desenhar mapas, mas encontrou algo decisivo que proporcionou uma guinada em sua carreira e, principalmente, na antropologia: um povo capaz de transformar um dos climas mais hostis do planeta em espaço de vida e memória. Entre os inuítes, Boas descobriu que a geografia não bastava para explicar a condição humana.



    Essa experiência o levou a romper com o determinismo geográfico, teoria forte do século XIX que afirmava que clima e relevo moldavam automaticamente a cultura. Além de aproximá-lo ainda mais dos estudos sobre as relações entre a mente humana e a cultura. O mergulho na análise dos mitos foi fundamental para isso.



    Ao observar que povos vivendo sob condições semelhantes criam formas de vida diferentes, Boas inverteu a lógica: não é o meio que determina mecanicamente a cultura, mas a cultura que interpreta e recria o meio. Da mesma forma, ao observar que um povo aparentemente simples produzia uma cultura riquíssima e sofisticada, redesignou os estudos sobre as relações entre raça e cultura.



    Dessa crítica nasceu seu particularismo histórico e o relativismo cultural: a ideia de que cada sociedade deve ser entendida em sua própria trajetória, sem esquemas universais como os supostos determinantes raciais e geográficos. .



    Essa postura orientou sua análise sobre o mito. Contra a visão evolucionista, que os tratava como resquícios de uma mentalidade primitiva, Boas mostrou que os mitos são documentos históricos e literários, enraizados na vida social.



    A narrativa de Sedna, a deusa do mar entre os inuítes (e outros povos do ártico), não é superstição: assim como acontece nas tradições dos monoteísmos da cultura ocidental, organiza rituais, regula a caça, traduz tensões entre humanos e animais, transmite valores morais.



    Para Boas, o mito não tem uma função universal de explicar a natureza; deve ser compreendido em seu contexto, como expressão simbólica e criativa de problemas humanos. E mais: suas variações manifestas em vários povos, podem nos ajudar a redesenhar as ideias do difusionismo cultural, tão em voga em sua época.



    Assim, o geógrafo se fez antropólogo. A recusa dos determinismos, o redesenho da leitura difusionista e a valorização do mito como forma legítima de pensamento abriram caminho para o culturalismo norte-americano. Com Boas, o mito deixou de ser visto como superstição e tornou-se expressão da dignidade cultural dos povos, base de uma antropologia fundada na etnografia, no empirismo, no relativismo e no respeito à pluralidade.


    Mito de Sedna narrado por Christiane Coutheux.

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  • 55. Mito: a perspectiva culturalista
    Aug 23 2025

    Depois da pausa que fizemos em nossas análises sobre o mito e sobre as escolas de pensamento na Antropologia, vamos retomar a nossa navegação pelo mito.


    Neste episódio, vamos tratar de uma das mais importantes teorias antropológicas: o Culturalismo Estadunidense.


    Como já vimos há alguns episódios, no final do século XIX, a antropologia ainda acreditava em uma escada de “evolução cultural”, colocando a Europa industrial no topo e rotulando outros povos como “atrasados”.


    Assim como o Funcionalismo Britânico, o Culturalismo Estadunidense, liderado por Franz Boas - mas com outros grandes nomes, a maioria discípulos seus -, quebrou essa lógica: cada cultura tem sua própria história, seus valores e formas de viver.


    Essa visão consolidou o relativismo cultural (que nós já analisamos num episódio específico) — a ideia de que não devemos julgar uma cultura com os padrões de outra. Mitos, rituais e costumes não são “restos do passado”, mas expressões legítimas de como cada sociedade enxerga e organiza o mundo.


    Mais do que uma teoria, o culturalismo foi um ato de valorização da diversidade humana e um enfrentamento ao racismo e às hierarquias culturais. Foi uma das primeiras, mais contundentes e fortes teorias a nos lembrar que não existe cultura superior ou inferior: existem diferentes maneiras de ser humano.


    Participação especial: Fábio Hakym (na leitura do mito Kwakiutl sobre a origem da constelação da Ursa Maior).


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  • 54. Transumanismo, Pós-humanismo e Antropotécnica (parte 2)
    Aug 12 2025

    Continuando a conversa com o filósofo Marcos Silva e Silva, neste episódio refletimos sobre Antropotécnica, retomando suas relações com o transumanismo, pós-humanismo e a biotecnologia.


    Como foi visto no episódio anterior (e será retomado aqui), o transumanismo, ao defender o aprimoramento radical da condição humana por meio da tecnologia, e o pós-humanismo, ao questionar os limites ontológicos do 'humano', tensionam as fronteiras entre natureza e cultura, orgânico e artificial.


    Nesse diálogo, a antropotécnica — enquanto conjunto de técnicas de modelagem do humano — emerge como um campo privilegiado para interrogarmos: que formas de vida estamos criando? Como ficam as questões éticas e morais nesse cenário?


    O diálogo entre Filosofia e Antropologia revela-se essencial para decifrar os desafios do transumanismo e das antropotécnicas. Enquanto a primeira problematiza os fundamentos éticos e ontológicos da transformação humana (como em Peter Sloterdijk, Martin Heidegger ou Giorgio Agamben), a segunda expõe como essas tecnologias são assimiladas, ressignificadas ou resistidas em contextos culturais específicos, como em Donna Haraway. A Antropologia nos lembra que toda técnica é culturalmente situada — seja a edição genética, as próteses digitais ou os algoritmos de IA.


    Juntas, elas desvendam não apenas o que o humano pode vir a ser, mas também como esses projetos são vividos e contestados — evitando tanto a abstração filosófica desenraizada quanto o relativismo antropológico sem crítica.


    O antropocast propõe a interdisciplinaridade como um caminho possível contra reducionismos.


    No episódio, ao navegarmos por estas reflexões, nós nos perguntamos: como reimaginar a humanidade sem reproduzir velhas hierarquias, agora sob novos disfarces tecnológicos? Quem é esse ser humano que estamos construindo? Qual o papel da memória, da ancestralidade, da nossa história na singularidade humana?


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  • 53. Transumanismo, Pós-humanismo e Antropotécnica (parte 1)
    Aug 1 2025

    Dando uma pausa em nossas reflexões sobre Mito e sobre as correntes de pensamento na Antropologia, o Antropocast convidou o filósofo e professor Marcos Silva e Silva para um bate papo a respeito de um tema muito atual e que nos toca a todas e todos: diante das revoluções aceleradas da tecnologia e da nossa relação com as máquinas, será que o “ser humano”, como nós conhecemos, está com os dias contados?


    Foi feito um bate papo bastante provocador sobre perspectivas para o futuro da humanidade a partir das tecnologias que prometem superar o corpo, a mente e até mesmo a morte — e sobre as filosofias que já anunciam um mundo pós-humano, onde as fronteiras entre natureza, máquina e identidade começam a se dissolver.


    Navegando por autores como Nietzsche, Heidegger, Donna Haraway entre tantos outros e também pelo fascinante universo da ficção científica, a conversa pretende incentivar uma reflexão crítica sobre o mundo dos ciborgues, inteligências (orgânicas e não orgânicas) e tantas outras questões relevantes.


    Esta é a primeira parte da conversa que continuará no próximo episódio.


    Contamos também com uma breve participação da professora do departamento de Letras da UFAL, Susana Souto, que nos honrou com a leitura do texto introdutório inspirado livremente no monólogo “Tears in rain”, do personagem Roy Batty, o androide vivido pelo ator Rutger Hauer no clássico da ficção científica no cinema “Blade Runner, o caçador de androides”.


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  • 52. Observar, Viver, Traduzir: três modos de habitar a diferença na Antropologia Britânica (parte 2)
    Jun 28 2025

    Seguindo o balanço entre os três grandes da Antropologia Britânica (Malinowski, Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard), constatamos que não estamos apenas diante de três grandes nomes da antropologia — mas de três formas distintas de enxergar o outro e de produzir conhecimento na antropologia.


    Neste episódio vamos aprofundar um pouco mais quem é esse outro para cada um dos três.

    Suas diferentes formas de ver o outro se refletem diretamente em estilos de produção de conhecimento e de uma escrita antropológica.


    Para concluir o episódio, analisamos que se trata de uma questão epistemológica: qual deve ser o papel da antropologia para cada um deles e, consequentemente, em que isso nos ajuda a pensar a antropologia hoje.

    Essas diferenças sintetizam aquilo que foi chamado aqui de três modos de habitar a diferença (e a própria antropologia).

    Encerrando nossa expedição pela Antropologia Britânica, o episódio é um convite a navegar por esses mares e pensar: qual é, afinal, a nossa forma de habitar essa ciência chamada antropologia?


    Agradecimento espeical à minha querida amiga Andréa Abrahão Costa, narradora do texto introdutório do episódio.


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  • 51. Observar, Conviver, Traduzir: três modos de habitar a diferença na Antropologia Britânica (Parte 1)
    Jun 16 2025

    Este episódio é a primeira parte de um balanço crítico sobre três grandes da antropologia britânica que trabalhamos até aqui, em episódios anteriores: Radcliffe-Brown, Malinowski e Evans-Pritchard.


    Mais do que nomes fundadores, eles representam três modos de conhecer o outro e construir o fazer antropológico: observar, conviver e traduzir.


    A partir dessa tríade conceitual, percorremos três eixos fundamentais: quem é esse "outro" estudado pelo(a) antropólogo (a); quem é esse(a) antropólogo(a)? o que é o conhecimento produzido e como o(a) antropólogo(a) deve agir para tornar esta produção possível?


    Esse dois episódios são, portanto, mais que uma comparação: é um convite à reflexão crítica sobre as heranças, limites e possibilidades de pensar a antropologia não como uma ciência positiva, mas como ciência da presença, da convivência, da tradução e da interpretação.


    Vem navegar com a gente!


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    52 minutos
  • 50. Estrutural Funcionalismo: Evans-Pritchard
    Apr 20 2025

    Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973) é uma das figuras mais notáveis da antropologia britânica do século XX, e sua trajetória intelectual reflete uma transformação profunda no modo como a disciplina concebe seus objetos, métodos e fundamentos epistemológicos.


    Inicialmente influenciado pelo estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown, com quem manteve relações acadêmicas próximas, Evans-Pritchard começou sua carreira preocupado com a organização social e os sistemas de parentesco, realizando extensos trabalhos de campo entre os Azande e os Nuer no Sudão.


    Suas etnografias, como

    Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande e The Nuer, são consideradas clássicos por sua profundidade analítica e por seu compromisso com o método empírico.


    No entanto, já nesses trabalhos, é possível notar um deslocamento em relação à tradição funcionalista: ao invés de apenas buscar a função social das práticas, ele começa a valorizar a lógica interna das culturas estudadas, reconhecendo que o pensamento nativo possui uma racionalidade própria.


    Esse deslocamento teórico se consolida nos anos 1950, quando Evans-Pritchard passa a defender uma concepção da antropologia não mais como ciência natural, mas como ciência do espírito, próxima da história e da filosofia.


    Inspirado por R.G. Collingwood e Wilhelm Dilthey, ele propõe que a tarefa do antropólogo é a reconstrução interpretativa dos sistemas simbólicos, e não a explicação causal de fenômenos sociais.


    Essa perspectiva hermenêutica é fortemente visível em

    Nuer Religion, obra em que a religião é tratada como expressão existencial e simbólica, e não como mero reflexo de estruturas sociais.


    Suas reflexões sobre tradução cultural, o papel da fé, os limites do racionalismo e as tensões entre ciência e crença revelam um autor que busca incessantemente conciliar sua formação acadêmica com uma profunda sensibilidade ao humano.

    Evans-Pritchard também exerceu influência institucional duradoura, consolidando Oxford como centro de excelência em antropologia e formando gerações de pesquisadores.


    Embora tenha sido criticado por não problematizar suficientemente o colonialismo, sua obra representa uma inflexão decisiva rumo a uma antropologia mais ética, reflexiva e comprometida com a escuta e a alteridade.


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    1 hora e 2 minutos