Por trás do artigo 19 do Marco Civil da Internet — aquele mesmo, celebrado em 2014 como guardião da liberdade de expressão no Brasil digital — esconde-se um debate explosivo, que há anos ferve, mas que agora atingiu o ponto de ebulição. Quando nasceu, ele parecia simples: se alguém se sentisse lesado por algo publicado nas redes, só com ordem judicial a plataforma deveria remover o conteúdo. A promessa era proteger o espaço do debate público, evitar censura privada, impedir que gigantes da tecnologia se tornassem juízes do que deve ou não circular.
Mas a realidade, sempre mais complexa do que os melhores projetos de lei, mudou o jogo. As redes sociais explodiram, algoritmos tomaram conta das conversas e, com eles, cresceram também comunidades tóxicas, ataques coordenados, perfis falsos e uma enxurrada de desinformação. O cenário ficou especialmente tenso após episódios como os de 8 de janeiro de 2023, quando a democracia balançou e o país inteiro se perguntou: quem, afinal, deve responder por tanto caos digital?
O julgamento do artigo 19 não foi um simples duelo jurídico. Foi, na verdade, a tradução das ansiedades, esperanças e medos de um país diante do colapso das fronteiras entre liberdade e responsabilidade. De um lado, a maioria dos ministros apontou que, diante dos riscos atuais, não dava mais para esperar o Legislativo. Eles defenderam um regime mais dinâmico, capaz de dar resposta rápida a violações graves, como ameaças à democracia e ataques aos direitos fundamentais. O modelo híbrido que emergiu da decisão mistura o rigor do Judiciário com a velocidade das notificações extrajudiciais: agora, em casos graves, a plataforma pode ser responsabilizada se, notificada, não agir — tudo isso sem depender de ordem judicial, salvo quando se trata de crimes contra a honra.
Houve resistência. Três ministros insistiram que qualquer mudança estrutural deveria partir do Congresso. Argumentaram que mexer na regra do jogo sem lei específica abre caminho para ativismo judicial e riscos de censura, transferindo demais poder para as empresas. No meio do caminho, uma terceira via: preservar a exigência judicial para crimes de honra, mas impor às plataformas obrigações claras e imediatas diante de ilícitos graves — sobretudo após notificação formal.
O resultado? Um novo regime, provisório mas robusto, que redefine o papel das plataformas, coloca o Legislativo contra a parede e empurra as empresas para uma corrida por transparência e eficiência. Agora, para e-mails, grupos privados ou crimes de honra, a velha lógica judicial se mantém. Mas para o restante, especialmente quando há nudez não consentida, conteúdo envolvendo crianças ou ações que atentem contra a democracia, a régua subiu: as plataformas precisam ser proativas, sob pena de responder por omissão.
No plano político, a decisão foi qualquer coisa, menos neutra. Para muitos, o STF agiu para suprir uma omissão inaceitável do Congresso, defendendo direitos fundamentais num momento de crise institucional. Para outros, foi ativismo puro, ameaça à separação dos poderes e, claro, um risco à liberdade de expressão. O recado ficou claro: se o Congresso não reagir, o Judiciário está disposto a assumir o protagonismo da regulação digital, ao menos por ora.
O sistema criado é provisório, experimental, e traz consigo insegurança jurídica. Sem uma legislação clara, cada caso será uma prova de fogo, exigindo vigilância constante da sociedade civil, da academia e de organizações de defesa dos direitos digitais.
O que está em jogo, afinal, é o futuro da democracia digital no Brasil? O STF encerra um ciclo e inaugura outro, mais incerto e repleto de desafios? O que virá depois? É sobre isso que falaremos no episódio de hoje. Vem com a gente.